Ela voava com asas estranhas.
Os céus estavam estranhos. O vento estava zunindo e levando tudo. Tupã e Cy estavam em fúria, podia-se ouvir suas vozes retumbantes, quando as nuvens eram riscadas com raios seguidos de seus brados que a tudo faziam vibrar, insatisfeitos com o que se viam sobre a Terra.
Em meio à tormenta, uma figura alada batia forte as grandes asas desprovidas de penas, como se fosse apenas uma com os céus tempestuosos. Levava consigo um pequeno tacape de formato em meia-lua, feito de pedra afiada como somente seu povo sabia fazer.
Ela mesma confeccionara aquele artefato como seus antepassados o faziam, como forma de se conectar com eles. Distantes memórias de quando fora curumim. O formato peculiar daquela singela arma, tal qual os enfeites na ponta do cabo que o adornavam, e a alça de palha que o permitia não cair-lhe das mãos durante os voos mais altos eram uma forma de manter viva uma pequena parte da cultura pertencente ao seu saudoso povo.
Enquanto ela voava os raios começavam a riscar nuvens mais próximas, clareando o céu noturno. Assim ela sentia pulsar a ira de Tupã e Cy quando o seus estrondosos sons preenchiam os ares e anunciava que viria muita água dos céus para banhar Cy — a Terra — em breve…
Ela sobrevoava em minutos a floresta e, ao retornar para o seio da Mata, via que toda aquela ventania havia perturbado um bando de morcegos — seus semelhantes de alguma maneira — fazendo-os abandonarem a copa de uma árvore mais alta, assustados, iniciando seu voo noturno.
Ouviu as vozes de seus semelhantes alados na escuridão noturna, os ruídos quirópteros semelhantes a sutis assobios, compreendendo o que diziam e observando assim o medo deles. Aproximou-se mais do bando e emitiu sons semelhantes respondendo aos seus ruídos e tentando acalmá-los, pois sabia que ao menos de Tupã e Cy eles não tinham o que temer.
Toda aquela ira não era contra os seres da Mata, e a cunhã-morcega sabia que as divindades nativas nada fariam contra nenhuma das criaturas de Cy, pois na limpeza que precisava ser feita ela mesma pretendia ajudar à sua maneira…
Aquela cunhã-morcega há várias luas passadas, somente se alimentava de animais, usando o afiado tacape em forma de meia lua para lhes dar morte rápida e piedosa, tal qual pregava o sagrado ciclo da vida. Se fosse puramente morcega, apenas frutas e insetos lhe bastariam, mas não era. E, assim, era temida até pelos humanos que possuíam a pele em tom avermelhado como a sua, por ser de fato diferente deles.
O povo das aldeias contava suas histórias com temor a seus filhos, em volta das fogueiras ou em noites de lua. Os mesmos que às vezes se referiam à ela por meu nome – Guandira, embora os ouvisse nomeá-la mais vezes por Cupendipe, o nome de sua extinta nação — o povo-morcego.
Mas agora outro tipo de ser aparentemente humano caminhava naquele solo que lhe era sagrado. Os que possuíam a pele branca, pelos na face e o corpo coberto por estranhas vestes. Eles não tinham o mínimo respeito pela Mata – por Cy e Sua sabedoria ancestral. Já haviam derrubado covardemente inúmeras árvores, muitas delas muito antigas e sábias, como se fossem para eles meros objetos. Vinham com suas grandes lâminas assassinas e suas armas estranhas, que cuspiam fogo.
Quando viam a Cupendipe caminhar ou planar pelas matas que haviam invadido, nas raras ocasiões que com ela haviam se encontrado, a chamavam de nomes absurdos, aos quais não fazia ideia do que significavam, mas lhe soavam ofensivos… “Gárgula”, “demônio”, “assombração com asas”… O que mais usavam mesmo era “demônio”.
Guandira pouco se importava com como tais invasores resolviam chamá-la. Porém após ver tudo o que este tipo de ser estava fazendo com Cy, sua generosa Terra-Mãe, queria ajudar na tarefa de eliminar estes seres nocivos vindos de além mar, sabe-se lá para quê ou porquê.
Seres estranhos que viviam tão somente para cortar árvores e matar seres das matas em vão. Como se suas vidas nada valessem. E para completar uma lista de seus desmandos, de vez em quando a Cupendipe via cunhãs, as moças virgens das aldeias, entrando na mata a noite para se esconder, fugindo destes malditos invasores.
Já havia salvado uma delas, sua companheira de várias e várias luas, em um passado já um tanto distante quando ainda era praticamente curumim. Apesar do tempo, jamais esquecera aquela cunhã, e foi para ajuda-la que havia matado um deles — a primeira vez que experimentou o sangue de um destes homens exóticos de pele clara. Eis uma serventia segura para eles — Serem alimento.
Na época o atacara apenas por sentir que ele era uma ameaça quando ele a havia atingido com algo que na ocasião ainda não sabia ser uma espécie de arma. Mas agora, após presenciar tantas vezes as intenções deles com Cy e com as cunhãs, sabia que fazia bem à elas matando-os para prover alimento. Por vezes se valia do tacape para tal intento e por vezes seu machado de meia-lua nem era necessário.
Nem Anhangá – que era a própria personificação das nuances caóticas e sombrias da natureza — ficava satisfeito com o que eles faziam, mas este costumava não tomar partido em defesa de ninguém quando era preciso. Ele e sua consorte Ticê pareciam pouco se ocupar da ameaça que aqueles invasores representavam.
Quanto às Coniupuyaras, chamadas por outras nações de Ycamiabas por serem uma comunidade inteira somente de cunhatãs sem maridos, correm boatos que elas haviam conseguido expulsar um grupo destes intrusos de seu território… mas mesmo para a cunhã-morcega por hora ainda era difícil encontrar onde ficava este lugar e pedir-lhes ajuda.
Então, Guandira teria apenas Tupã e Cy por testemunha naquela noite. E sentia em suas entranhas que devia seguir seus instintos, aproveitando para livrar a Terra-Mãe gentil da presença predatória e da ameaça que estavam se tornado aqueles exóticos intrusos.
De repente, algo interrompia os pensamentos de Guandira. Ouvia um ruído alto e repentino na mata. Parecia o som surdo de um disparo daquelas armas barulhentas que cospem fogo. Virou a cabeça e fixou seu olhar profundo, enquanto ainda planava noite adentro, desta vez mais próxima das copas das árvores. Segurou o tacape-meia-lua apertando-o entre os dedos, as asas enrijeceram e ficou totalmente alerta.
Conseguia ver perfeitamente no escuro quando uma pequena ave noturna, aquela que os humanos chamavam de “rasga-mortalha” pelo som cortante que o bater de suas asas fazia no escuro, voou apressadamente, passando por ela. Com seu sutil ruído característico a ave passou tão assustada que a cunhã-morcega nem conseguiu lhe perguntar o que havia.
Logo se colocou em uma de suas posições mais confortáveis e convenientes para investigar — asas fechadas recolhidas junto aos braços, machado meia-lua escondido dentro delas e pernas abraçadas a um galho de árvore, com o corpo pendurado de ponta à cabeça, rente ao tronco quase da mesma cor de sua pele e de suas asas, onde se misturava entre as folhagens como parte da árvore, se ocultando com perfeição. Ali ficou uns instantes, olhos e ouvidos atentos.
Foi, então, quando viu um destes homens de pele clara segurando uma daquelas armas em uma mão e arrastando uma cunhã por entre as árvores com a outra. Resolveu segui-los. A moça da aldeia chorava. Contra a vontade dela, ele a levava, enquanto a sensível audição da Cupendipe captava o som grave que escapava da garganta do estranho tipo humano.
— Não sejas tímida, oh rapariga! Se não fosses tão arisca não precisaria de meu mosquete para convencer-te a vir comigo… Vais servir-me, e a meus companheiros esta noite… E se te comportares bem, ganhará um presente quando estivermos satisfeitos…
Guandira o ouvia falar enquanto a cunhã humana chorava copiosamente e tentava em vão puxar o braço para a direção contrária. A moça com asas podia ver na penumbra que a mão masculina que não segurava o mosquete prendia com força o pulso da moça que caminhava com hesitação de um modo que ela não podia escapar. Continuou a segui-los cruzando os galhos das árvores, enquanto ainda o ouvia falar, numa língua que lhe soava muito estranha, mas se esforçava para entender… Afinal, não era a primeira vez que ouvia um deles falar algo parecido.
— Ora pois, índia, por que choras? Vosmecês caminham nuas, a nos incitar os desejos… Não é culpa nossa se sois tão lindas, mas não possuem pudores!
Guandira percebia que apesar de não compreender uma só palavra dita pelo homem, a cunhã sentia-se vulnerável. A cunhã-morcego estava louca para pular e rasgar a jugular masculina que vibrava com um riso debochado ao pronunciar aquelas palavras… Usaria o tacape para abrir-lhe o crânio! Não se conformava com o modo como aqueles intrusos tratavam as cunhãs! Os absurdos e covardias que faziam Cy testemunhar…
Então, no mesmo instante, o intruso viu que a copa de uma árvore parecia se mover e ergueu a cabeça, um tanto desconfiado. Parecia ter ouvido um bater de asas… Algum animal selvagem estaria próximo?
A Cupendipe estava prestes a se revelar por causa de sua ira contida, mas se controlou com esforço, pois imaginou que para onde ele iria haveriam outros. Seria realmente maravilhoso pegá-los todos de uma só vez. Haveria assim comida para ela mesma, através da seiva escarlate que sairia daquelas veias e também para outros irmãos de outras espécies que caminhavam pela Mata sobre quatro pés, e os quais também precisavam de alimento através da carne que ela deixaria para eles. De algum modo aqueles invasores seriam úteis para matar a fome de outras criaturas de Cy, e somente por isto ela aguardou um pouco mais.
Quando em minutos o branco chegou próximo aos outros não precisou de muitas palavras. Eles estavam em volta de uma pequena fogueira. Suas roupas estranhas, os exóticos olhos e cabelos claros iluminados pelo fogo.
Logo se ergueram e cercaram a cunhã com sorrisos maliciosos na face. A moça se encolhia e tentava se esquivar das várias mãos enquanto eles a apalpavam. Ela tentou correr e foi impedida, cercada.
O sangue de Guandira agora fervia… Em instantes não aguentou mais e se atirou aos ombros de um dos homens, puxando-o para trás de uma grande árvore em segundos, com destreza. Afastava-o dos demais para dentro da mata enquanto montava em seus ombros usando as coxas para sufocá-lo, tampando sua boca…
Foi tão rápida que ele nem soube direito o que havia acontecido. Tudo ocorreu de modo que os outros sequer notassem… Ele se debateu desgovernado com as pernas da Cupendipe em volta de sua cabeça. Mas a cunhã-morcega bateu sutilmente as asas e o segurou com firmeza.
A Cupendipe em seguida terminou por vencer o humano desorientado em poucos instantes, ao golpear seu crânio com o machado meia-lua antes que ele chamasse a atenção dos demais. Desmontou sua presa, segurando-o antes que ele caísse, e lhe enterrou os dentes na jugular ainda planando, sem que seus pés sequer alcançassem o chão enquanto agia.
O homem nem soube o que o atingiu e teve boa parte de seu sangue drenado com fartos goles, enquanto se ouvia ainda o riso dos outros, aparentemente sem perceberem o que de fato ocorria nos arbustos adiante, e que o companheiro estava morto.
Guandira aproveitou o quanto a própria cunhã distraía o grupo, e em minutos repetiu com gosto a façanha com mais dois deles. Agora seria fácil se mostrar para pegar os últimos de frente.
— Ei, gajos! Não é hora para se aliviarem no mato!
— Hão de perder todo divertimento… Onde vosmecês estão?
Os dois bradavam ainda aos risos, e já se preparavam para despirem-se da cintura para baixo, enquanto um já havia encostado a cunhã numa árvore. No entanto seus brados descontraídos foram interrompidos por um alto “guincho” semelhante ao ruído de um animal. Talvez morcegos? Mas nem eles guinchavam assim… O som parecia vir de algum lugar bem acima de suas cabeças. Eles olharam para cima e sentiram o sangue gelar. Então libertaram a índia, que caiu ainda confusa.
Guandira bateu as asas com força e planou bem diante deles, trazendo um vento hostil contra as faces estupefatas que a observavam. Segurou um dos homens erguendo-o do chão pelos cabelos para graciosamente enterrar o tacape com força em sua garganta com um golpe certeiro, e beber a deliciosa seiva escarlate que do ferimento escorria ainda em pleno ar.
“Mas que aberração era aquela? Só podia ser um demônio!” — O último homem pensava. Então se afastou correndo da bela índia que antes estava prestes a possuir sem que ela o quisesse, e daquela coisa demoníaca que voava entre ela e ele agora… Tinha asas! Estranhas asas de morcego…
— Gárgula! Demônio! – gritou ele.
— Cupendipe! – gritou a cunhã que estivera em poder dos invasores.
Cada qual correu em direção contrária na mata, o que deixou a moça alada feliz, porque a cunhã logo estaria a salvo em sua aldeia, e levaria mais um relato a seu respeito para ser contado. Então Guandira, com sangue a manchar-lhe boa parte da face e o machado-meia-lua, foi ao encalço do último homem branco, que era o primeiro quem trouxera a moça.
Quando o alcançou, lhe lançou um chute ainda batendo as grandes asas e o deteve rente a um tronco de árvore, imobilizando-o com um dos braços, tal qual ele mesmo fizera com a índia capturada minutos antes. Com a outra mão a Cupendipe erguia lentamente o tacape ainda sujo de sangue e olhava-o sorrindo enquanto o ouvia gritar em vão.
Com a mão que antes o segurava usou as unhas e lhe rasgou primeiro suas roupas esquisitas, enquanto o pavor o impedia de reagir ou sequer se mover, já sabendo o quanto aquilo fazia um homem como ele se sentir vulnerável. Tal qual eles faziam as cunhãs que molestavam se sentirem!
Guandira logo enterrou os dentes em sua jugular após subjuga-lo por mais alguns instantes, e provou seu sangue. Em seguida enterrou o tacape no alto de sua cabeça, tomando-lhe a vida para deixar o resto juntamente com a carne para os seus amigos, os lobos-guarás, que certamente apreciariam o belo banquete deixado de presente aos pés daquela árvore.
O indigno predador humano agora havia se tornado a indefesa presa, para alimentar a quem normalmente caçava. Graças aos corpos daqueles humanos ali abandonados a refeição de vários dos amigos selvagens de Guandira — os que caminhavam sobre quatro patas — naquelas matas seria farta. Tupã bradou uma vez mais, vibrando tudo ao redor enquanto se via o clarão de sua ira manifesta em raios clarear a noite por um breve instante.
A Cupendipe sabia que aquela era sua resposta, e a manifestação de como sua singela ajuda na luta contra os invasores era apreciada… Cy, a Terra, agora era finalmente banhada pelas águas sagradas advindas do céu com fartura e vigor… A tempestade serviu bem para lavar tanto a face quanto o tacape em meia-lua de Guandira, sujos do sangue de sua última refeição.
As águas vindas do céu para brindar aquele farto banquete selvagem. A limpeza da Terra estava sendo feita e talvez o equilíbrio ancestral das matas ainda pudesse ser mantido, enquanto a Cupendipe voasse e outros seres daquelas florestas aparecessem para punir quem ameaçasse tal harmonia.