Continuação do conto: Caçador Vampiro
No mesmo instante em que o corpo de Sam desfaleceu, os olhos de Eddie voltaram a sua coloração escura, normal e humana. E suas presas vampíricas recuaram dando lugar a dentes humanos comuns. Ele então contemplou aquele corpo desfalecido em seus braços… que parecia tão sereno!
E mal sabia Sam que Eddie de fato escutava cada palavra em sua mente enquanto sugava seu pescoço, e que através do gosto de seu sangue podia de fato sentir seus sentimentos e emoções de algum modo insólito que não saberia explicar.
…Sentimentos nutridos por ele, já há tanto tempo em silêncio. Exatamente por isto tentara internamente lutar contra a sua animosidade, e já que não podia cessar a sucção, ao menos que ela fosse no mínimo prazerosa para ambos. Uma sensação ainda intensa, porém que lhes suscitasse deleite mútuo…
No mínimo que honrasse aqueles sentimentos nutridos ao longo daquela parceria. Aos quais aquele caçador nunca quisera ver quando simplesmente os aceitava como somente amizade. Ou talvez desde sempre já soubesse que não seria apenas isto, se ele assim quisesse. Mas nunca soubera lidar com sentimentos, nem os dos outros e nem os dele mesmo.
Eddie naquele instante estava diante de um grave dilema moral, mas sabia que precisava agir rápido e cada segundo contava… Soltou um tênue rosnado contrariado diante das limitadas opções, bufou com face carrancuda, e antes que pudesse julgar a si mesmo deixou fluir seus dons vampíricos uma vez mais.
Odiava mortalmente deixar-se tomar por aquela maldição que carregava, embora em batalha o frenesi lhe desse vantagens que lutando como humano não teria… Ainda assim possuía asco de si mesmo quando admitia ter se tornado uma daquelas coisas, as quais aprendera a odiar desde que se entendia por gente… Assim como todos os outros caçadores, outrora aliados, e que haviam passado a renega-lo como ele mesmo faria com qualquer um deles que houvesse tido tal destino…
Como mandava o rígido código dos caçadores, pois sabia ser este o costume ao longo dos séculos, onde caçadores convertidos à maldição dos seres noturnos poderiam ser abatidos por outros caçadores ou minimamente abandonados a própria sorte… E tendo sido dono de seu próprio destino desde tenra idade, Eddie não esperara a decisão de seus aliados de outrora, e apenas havia se apartado de convivência humana ele mesmo…
Tendo tido somente uma pessoa que ousara se colocar contra códigos e tradições ao insistir permanecer ao seu lado… Uma pessoa que finalmente agora pagara o preço por tal decisão. Por mais que tal ato era iminente cedo ou tarde, e havia já tido a certeza de que Sam assim desejara — devido aos sentimentos e desejos que seu sangue havia revelado, por mais evidentes que já seriam na convivência de tantos anos entre os dois.
Sam lhe fora leal até o fim, e agora não merecia pagar por isso com a inexistência. Devia impedir-lhe a finitude mesmo que se valesse da maldição. E aquilo já era motivo forte o suficiente para que Eddie suportasse uma vez mais a ojeriza de sentir sua humanidade posta de lado para deixar fluir seus poderes sobrenaturais… Assim, com os dentes salientes e afiados, abriu um talho profundo em seu próprio pulso…
O sangue verteu vívido e escarlate… O frio sangue de um ser noturno, ainda que este fosse ao mesmo tempo um exterminador de outros seres noturnos… O sangue que sugara outrora quente das veias de Sam e já havia sido filtrado por seu corpo maldito tomado pelos dons vampíricos… Em instantes aquele líquido viscoso, gélido e vermelho estava sendo vertido nos lábios de Sam, cujo corpo humano e já a beira da morte ainda jazia totalmente inerte nos braços do Caçador Vampiro…
Insistiu um pouco, temendo já ser tarde demais para que aquilo funcionasse, temendo ter se demorado em dúvidas morais e hesitações, enquanto ao mesmo tempo ainda vivendo seu drástico conflito interno de estar passando aquela maldita condição adiante… Estar fazendo com alguém o mesmo que infortunadamente haviam feito consigo mesmo. Na aflita tentativa de evitar ter de lidar com a finitude de Sam. Então notou como o medo de perdê-lo lhe invadia de modo selvagem e irracional, quer ele soubesse ou não como expressar aquele pesar…
…Já estava sendo totalmente tomado pelo desespero da perda da última pessoa com quem realmente se importava, quando finalmente os lábios moribundos se moveram e se puseram a sugar o sangue gelado de seu pulso cortado. Eddie então parou de julgar seu próprio ato de escolher transformar o companheiro, assumindo que não havia escolha razoável e nem mesmo sensata naquela situação.
Aliás, sensatez era algo que precisava ser deixado para segundo plano naquele momento… Enquanto Sam agora bebia com sofreguidão aquele veneno de suas veias desafortunadas, atraindo para si o mesmo destino amaldiçoado que aquelas duas almas partilhariam. Eddie já parecia conformado de que o único meio de evitar a finitude de Sam naquele momento seria entrega-lo à sua própria maldição…
De repente, contemplava agora aquela face outrora serena de alguém que sentira deleite em dar-lhe a própria vida, quando aqueles olhos claros e acinzentados se fecharam em um sono já vampírico e necessário para que a transformação se completasse… Mas não antes de aqueles dois dois pares de olhos se cruzarem, em um breve instante que sem palavras pareciam dizer tudo o que ambos não haviam sido capazes em anos…
Minutos depois, já tendo se sentado um tanto conformado a um canto do chão de cimento daquela antiga fábrica erma, ainda em meio aos restos da batalha ocorrida ali há incontáveis minutos antes. Eddie agora bufava mais uma vez ao contemplar demoradamente o corpo adormecido de Sam…
…e que aos poucos ia deixando de ser um corpo humano, assim como acontecera com o seu próprio meses antes… E mesmo que contemplasse com pesar tal processo acontecer, estava convencido de que fizera o que tinha de fazer. De repente teve de assumir algo que gritava bestialmente em seu peito, fosse ele vivo ou morto: perder Sam seria muito pior do que transforma–lo em um vampiro.
Embora ainda que continuasse, como lhe era de costume, sem saber o que fazer com suas próprias emoções e afetos, Eddie parecia ao menos admitir para si mesmo que garantir a existência de Sam havia se tornado mais importante do que qualquer coisa — inclusive seus próprios princípios de declarar morte a todo e qualquer Vampiro tantos anos antes, quando entrara para aquela vida de Caçador de Vampiros ainda tão jovem.
Já havia perdido um irmão naquela difícil missão que ambos haviam abraçado ainda adolescentes, o vira se perder sem nada poder fazer… …mas nunca pensara em parar, pois aquilo era tudo o que sabia fazer. E aquele submundo tão desconhecido e distante das pessoas comuns era o que o fazia reconhecer a si mesmo.
Sabia que o irmão perdido não o perdoaria se ele desistisse definitivamente de lutar, sejam quais fossem as circunstâncias. Haviam jurado lutar por verdade e justiça há muito tempo, ainda que fosse uma verdade conhecida por poucos e uma justiça oculta e por vezes cega. Juramento feito na mesma época em que Sam se juntara a eles com os mesmos ideais e uma afinidade quase instantânea, nutrida por Eddie desde os primeiros dias quando se conheceram. E desde então sempre haviam se ajudado, ate ali…
Até porque dali em diante quando Sam acordasse ambos seriam duas pessoas fadadas a uma mesma maldição, que teriam que aprender a conciliar com uma missão que ambos haviam abraçado ainda na empolgação idealista da tenra idade. Contudo, estariam agora compartilhando aquela sina juntos, em uma insólita estrada dividida entre dois mundos totalmente opostos. Entretanto teriam um ao outro… Talvez pela eternidade ou por quanto tempo durasse aquela parceria que sempre fluiria tão intensa e forte quanto aquele sangue que agora intrinsecamente os unia.