Caçador Vampiro — Maldição 

Vampire Hunter Maldição_

Continuação do conto: Caçador Vampiro

No mesmo instante em que o corpo de Sam desfaleceu, os olhos de Eddie voltaram a sua coloração escura, normal e humana. E suas presas vampíricas recuaram dando lugar a dentes humanos comuns. Ele então contemplou aquele corpo desfalecido em seus braços… que parecia tão sereno!
E mal sabia Sam que Eddie de fato escutava cada palavra em sua mente enquanto sugava seu pescoço, e que através do gosto de seu sangue podia de fato sentir seus sentimentos e emoções de algum modo insólito que não saberia explicar.
…Sentimentos nutridos por ele, já há tanto tempo em silêncio. Exatamente por isto tentara internamente lutar contra a sua animosidade, e já que não podia cessar a sucção, ao menos que ela fosse no mínimo prazerosa para ambos. Uma sensação ainda intensa, porém que lhes suscitasse deleite mútuo…
No mínimo que honrasse aqueles sentimentos nutridos ao longo daquela parceria. Aos quais aquele caçador nunca quisera ver quando simplesmente os aceitava como somente amizade. Ou talvez desde sempre já soubesse que não seria apenas isto, se ele assim quisesse. Mas nunca soubera lidar com sentimentos, nem os dos outros e nem os dele mesmo.
Eddie naquele instante estava diante de um grave dilema moral, mas sabia que precisava agir rápido e cada segundo contava… Soltou um tênue rosnado contrariado diante das limitadas opções, bufou com face carrancuda, e antes que pudesse julgar a si mesmo deixou fluir seus dons vampíricos uma vez mais.
Odiava mortalmente deixar-se tomar por aquela maldição que carregava, embora em batalha o frenesi lhe desse vantagens que lutando como humano não teria… Ainda assim possuía asco de si mesmo quando admitia ter se tornado uma daquelas coisas, as quais aprendera a odiar desde que se entendia por gente… Assim como todos os outros caçadores, outrora aliados, e  que haviam passado a renega-lo como ele mesmo faria com qualquer um deles que houvesse tido tal destino…
Como mandava o rígido código dos caçadores, pois sabia ser este o costume ao longo dos séculos, onde caçadores convertidos à maldição dos seres noturnos poderiam ser abatidos por outros caçadores ou minimamente abandonados a própria sorte… E tendo sido dono de seu próprio destino desde tenra idade, Eddie não esperara a decisão de seus aliados de outrora, e apenas havia se apartado de convivência humana ele mesmo…
Tendo tido somente uma pessoa que ousara se colocar contra códigos e tradições ao insistir permanecer ao seu lado… Uma pessoa que finalmente agora pagara o preço por tal decisão. Por mais que tal ato era iminente cedo ou tarde, e havia já tido a certeza de que Sam assim desejara — devido aos sentimentos e desejos que seu sangue havia revelado, por mais evidentes que já seriam na convivência de tantos anos entre os dois.
Sam lhe fora leal até o fim, e agora não merecia pagar por isso com a inexistência. Devia impedir-lhe a finitude mesmo que se valesse da maldição. E aquilo já era motivo forte o suficiente para que Eddie suportasse uma vez mais a ojeriza de sentir sua humanidade posta de lado para deixar fluir seus poderes sobrenaturais… Assim, com os dentes salientes e afiados, abriu um talho profundo em seu próprio pulso…
O sangue verteu vívido e escarlate… O frio sangue de um ser noturno, ainda que este fosse ao mesmo tempo um exterminador de outros seres noturnos… O sangue que sugara outrora quente das veias de Sam e já havia sido filtrado por seu corpo maldito tomado pelos dons vampíricos… Em instantes aquele líquido viscoso, gélido e vermelho estava sendo vertido nos lábios de Sam, cujo corpo humano e já a beira da morte ainda jazia totalmente inerte nos braços do Caçador Vampiro…
Insistiu um pouco, temendo já ser tarde demais para que aquilo funcionasse, temendo ter se demorado em dúvidas morais e hesitações, enquanto ao mesmo tempo ainda vivendo seu drástico conflito interno de estar passando aquela maldita condição adiante… Estar fazendo com alguém o mesmo que infortunadamente haviam feito consigo mesmo. Na aflita tentativa de evitar ter de lidar com a finitude de Sam. Então notou como o medo de perdê-lo lhe invadia de modo selvagem e irracional, quer ele soubesse ou não como expressar aquele pesar…
…Já estava sendo totalmente tomado pelo desespero da perda da última pessoa com quem realmente se importava, quando finalmente os lábios moribundos se moveram e se puseram a sugar o sangue gelado de seu pulso cortado. Eddie então parou de julgar seu próprio ato de escolher transformar o companheiro, assumindo  que não havia escolha razoável e nem mesmo sensata naquela situação.
Aliás, sensatez era algo que precisava ser deixado para segundo plano naquele momento… Enquanto Sam agora bebia com sofreguidão aquele veneno de suas veias desafortunadas, atraindo para si o mesmo destino amaldiçoado que aquelas duas almas partilhariam. Eddie já parecia conformado de que o único meio de evitar a finitude de Sam naquele momento seria entrega-lo à sua própria maldição…
De repente, contemplava agora aquela face  outrora serena de alguém que sentira deleite em dar-lhe a própria vida, quando aqueles olhos claros e acinzentados se fecharam em um sono já vampírico e necessário para que a transformação se completasse… Mas não antes de aqueles dois dois pares de olhos se cruzarem, em um breve instante que sem palavras pareciam dizer tudo o que ambos não haviam sido capazes em anos…
Minutos depois, já tendo se sentado um tanto conformado a um canto do chão de cimento daquela antiga fábrica erma, ainda em meio aos restos da batalha  ocorrida ali há incontáveis minutos antes. Eddie agora bufava mais uma vez ao contemplar demoradamente o corpo adormecido de Sam…
…e que aos poucos ia deixando de ser um corpo humano, assim como acontecera com o seu próprio meses antes… E mesmo que contemplasse com pesar tal processo acontecer, estava convencido de que fizera o que tinha de fazer. De repente teve de assumir algo que gritava bestialmente em seu peito, fosse ele vivo ou morto: perder Sam seria muito pior do que transforma–lo em um vampiro.
Embora ainda que continuasse, como lhe era de costume, sem saber o que fazer com suas próprias emoções e afetos, Eddie parecia ao menos admitir para si mesmo que garantir a existência de Sam havia se tornado mais importante do que qualquer coisa — inclusive seus próprios princípios de declarar morte a todo e qualquer Vampiro tantos anos antes, quando entrara para aquela vida de Caçador de Vampiros ainda tão jovem.
Já havia perdido um irmão naquela difícil missão que ambos haviam abraçado ainda adolescentes, o vira se perder sem nada poder fazer… …mas nunca pensara em parar, pois aquilo era tudo o que sabia fazer. E aquele submundo tão desconhecido e distante das pessoas comuns era o que o fazia reconhecer a si mesmo.
Sabia que o irmão perdido não o perdoaria se ele desistisse definitivamente de lutar, sejam quais fossem as circunstâncias. Haviam jurado lutar por verdade e justiça há muito tempo, ainda que fosse uma verdade conhecida por poucos e uma justiça oculta e por vezes cega. Juramento feito na mesma época em que Sam se juntara a eles com os mesmos ideais e uma afinidade quase instantânea, nutrida por Eddie desde os primeiros dias quando se conheceram.  E desde então sempre haviam se ajudado, ate ali…
Até porque dali em diante quando Sam acordasse ambos seriam duas pessoas fadadas a uma mesma maldição, que teriam que aprender a conciliar com uma missão que ambos haviam abraçado ainda na empolgação idealista da tenra idade.  Contudo, estariam agora compartilhando aquela sina juntos, em uma insólita estrada dividida entre dois mundos totalmente opostos. Entretanto teriam um ao outro… Talvez pela eternidade ou por quanto tempo durasse aquela parceria que sempre fluiria tão intensa e forte quanto aquele sangue que agora intrinsecamente os unia.

Clóvis – Carnaval Aterrorizante

Os Clóvis são figuras pitorescas e um tanto macabras desde os carnavais de rua mais antigos, com suas máscaras e roupas chamativas, as quais ninguém sabe quais intenções podem esconder… Inspirando assim tanto curiosidade, quanto medo.

Há quem diga que a origem destes misteriosos palhaços mascarados, ora coloridos, ora aterrorizantes, está ligada aos matadouros das periferias de décadas passadas, que durante o carnaval lhes cediam vísceras de animais mortos, as quais eles enchiam de ar ou serragem e usavam para bater no chão e criar um estrondo que assustava outros foliões pelas ruas… E assim com tal criatividade sádica davam um toque aterrorizante às suas fantasias, ficando conhecidos popularmente como bote-bolas.

Porém mais tarde a brincadeira foi tomando ares, digamos mais leves no passar dos carnavais, com bexigas feitas de plástico ou borracha…

E a origem lúgubre destes palhaços carnavalescos virou mera lembrança de outros carnavais… Ou pode ser a base perfeita para a lenda urbana à seguir…

Naquela carnavalesca noite alguns pequenos blocos populares de Clovis desfilavam em volta do coreto montado na praça central daquele pequeno bairro.

Tobia e Fátima haviam se destacado da pequena multidão que acompanhava os desfiles, e namoravam em um canto deserto, distante. A garota de repente sentiu um incômodo e cessou os beijos quando via nitidamente que o moço queria bem mais.

— Eu acho melhor voltarmos por enquanto…

— Que é isso, gata! Vamos aproveitar a festa…

–Sim… A que ficou naquela direção! Foi pra isso que viemos, não foi…? – A jovem, fantasiada com orelhas de gato feitas de veludo preto no alto da cabeça, apontava para a direção de onde o som da música ainda podia ser ouvido apesar da distância, e sorria nervosamente.

Ela sentia uma urgente sensação de alerta, fosse pelo atrevimento inesperado do parceiro, fosse por outra coisa naquela penumbra erma onde se encontravam, que lhe dava um estranho arrepio na espinha… Ao qual ela não entendia o motivo, mas não estava nem um pouco a fim de ficar ali para descobrir.

— Bom, eu vou voltar para a praça… Quero uma bebida… Você vai ficar aí?

A gata com orelhas de feltro preto se deslocou da parede e principiava a andar… O rapaz, com a cabeça enfeitada por chifres de diabo feitos de plástico, ainda tentou forçar a moça a ficar com ele de maneira abusada, prendendo os braços dela com força. Fátima não gostou nem um pouco e se desvencilhou empurrando-o…

— Que é isso!? Eu disse que agora NÃO! Se você queria “aproveitar a festa de outro jeito”, porque me arrastou para esse desfile de palhaços na rua?

— Como assim, gatinha? Não me leve a mal… É Carnaval! Vamos fazer algo diferente aqui mesmo… – ele dizia tentando passar uma das mãos no corpo da moça…

— Não teve graça! Não foi isso que você combinou comigo! Fica aí sozinho com tua mão boba, e tuas cantadas idiotas!

Tobia ainda tentou puxa-la de volta, mas Fátima deu-lhe um forte chute nas partes íntimas e se afastou o mais depressa que pôde, antes que ele tentasse alcançá-la.

Tentando se escorar na parede o moço fechou com força os olhos e ainda cuspiu alguns palavrões, inconformado e gemendo de merecida dor.

Quando abriu as pálpebras planejando ir embora viu uma figura fantasiada bem próxima a si… A voz saiu irritada e sarcástica…

— Que foi, palhaço?? Eu não tô com saco para essas brincadeirinhas de merda, agora… Vai procurar tua turma!!

Era um dos tradicionais Clóvis, que eram vistos nas ruas com suas roupas coloridas e espalhafatosas, embora este apresentava uma roupa toda em preto e branco, embora igualmente bufante…

Tobia ainda segurava a genitália dolorida, quando resolveu contemplar melhor aquela máscara que aquele Clóvis trazia, e notou que ela lhe parecia um tanto lúgubre e distorcida demais… O palhaço mascarado não se mexera diante dele, tal qual uma alegoria sinistra, e parecia agir de modo diferente dos outros… Estranho… Era uma figura assustadoramente parada e silenciosa. Dava medo.

O moço com chifres de diabo artificiais então logo notou que aquele Clovis parecia mais aterrorizante que o normal, e trazia algo que parecia uma foice um tanto realista demais em uma das mãos. Não podia ver-lhe a verdadeira face por trás da máscara, para saber se era algum conhecido tentando pregar-lhe uma peça. Mas fosse quem fosse naquele momento, Tobia não estava para brincadeiras e franziu o cenho. Tentou disfarçar o medo que já lhe assaltava, embora não admitisse. A voz saiu firme, porém na defensiva…

— Quem é você, idiota!? Quem você quer assustar com esta fantasia? Saia da minha frente…

Antes que o rapaz dissesse mais alguma coisa, o mascarado levantou a foice afiada e deu um golpe certeiro em seu pescoço, atingindo em cheio sua garganta e impedindo logo que ele gritasse… Tobia agora tentava emitir sons enquanto caía de joelhos e o sangue se esvaía em profusão manchando sua camiseta… Enquanto o sádico mascarado lhe disferia novos golpes no pescoço com a foice.. até quando seu corpo já havia caído ao chão e ele finalmente o separou do pescoço fazendo sua cabeça rolar pela calçada metros à frente.

Logo jazia um corpo decapitado próximo a uma parede, e no meio fio a cabeça com os chifres de plástico… que naquele cenário acentuavam o tom aterrorizante da cena, mesmo sendo apenas um acessório. A parca luz bruxuleante de um poste que ameaçava apagar, na outra calçada, ajudava a completar o tom nefasto da cena.

Minutos depois um grupo de três mulheres caminhava a poucos metros, com suas maquiagens regadas à purpurina, seus vestidos curtos feitos de tecido brilhante com lantejoulas e saias transparentes de tule armado sobrepostas. Vinham descendo aquela mesma calçada a caminho da festa que ainda continuava animada na praça do coreto, e totalmente alheia ao que estava acontecendo naquela rua deserta adjacente e tão mal iluminada por aquele único poste que ainda piscava. A luz ora apagava, ora acendia.

Uma delas soltou um grito ao passar e puxou as outras pelas mãos para o meio da rua, ao ver ali aquele corpo decapitado sentado recostado ao muro margeado pela calçada, com uma poça de sangue e a cabeça com chifres em seu próprio colo, exibindo uma expressão aterrorizada na face manchada de rubro… Ou era o que parecia naquela penumbra há metros de distância, pois a luz do poste se apagara quando elas passavam.

— AAAAAAH! Que merda é aquela ali??

— Calma Nice, deve ser uma brincadeira doentia de algum babaca… Nem chega perto… Que desperdício de sangue falso!

— E se for de verdade, Rafelle? Não acha melhor chamar alguém… – Berenice insistiu enquanto ambas permaneciam de costas para o poste do outro lado da rua, cuja luz piscou e tremeluziu mais uma vez por alguns instantes enquanto elas falavam…

— Que nada, Nice! Deixa disso! Dá pra ver que é um manequim… Devem ter colocado aqui pra assustar as pessoas de propósito… E um boneco de demônio muito mal feito! Nem tinham uma roupa decente e colocaram qualquer coisa… Vambora pra festa!

A terceira amiga, Inês, nada dissera e apenas seguira as outras, meio ressabiada e ansiosa. Não necessariamente pela tal “peça de decoração lúgubre” que haviam acabado de ver, mas por causa do Clóvis todo trajado em preto e branco, cuja máscara pitoresca encarava o trio semioculta pelo poste do outro lado da rua no momento em que a luz do mesmo se acendera… E mesmo depois quando novamente se apagara podia ainda ver a silhueta dele na rua escura, parcamente iluminada apenas pelas luzes que vinham de longe. Ele parecia acenar… E Inês podia jurar que havia sangue em seus dedos.

Agora, enquanto voltavam a caminhar, ela engolia em seco e estava em dúvida se estragava ou não a animação de Rafelle e assustava Nice mais ainda, pois decidia se devia ou não contar a elas que aquela figura sinistra e mascarada parecia claramente seguí-las a distância pela outra calçada… Era bom que chegassem logo àquela praça lotada e iluminada metros à frente… Embora isso provavelmente não seria total garantia de que estariam totalmente à salvo à noite toda.

O lúdico e o profano do Carnaval sempre aparecem próximos, e quando esta junção acontece trás para a festa algo de lúgubre… Há muito de macabro na falsa alegria que se espalha nesta época e principalmente em certas máscaras e fantasias! Uma época festiva e despreocupada, em que inúmeros mascarados podem circular com certa naturalidade e liberdade pelas ruas sem causar estranheza alguma até que já seja tarde, tanto para sorrir quanto para gritar.

***Sobre a autora:

“Sou a antítese do paradoxo com premissas de incerteza e períodos de instabilidade…”

Diz sobre si Nanda Diletante, vulgo Fernanda Miranda — autora fascinada por histórias sobrenaturais, que costuma compartilha-las no blogue Essência Diletante do WordPress e no DiletanteCast pelo Spotify… Alguém que ama gatos e cinema oitentista. Outrora já organizou e participou de várias antologias literárias, incluso uma de Portugal… Mas após o apocalipse nosso de cada dia tenta não sucumbir num surto coletivo de realidades estranhas.

[CONTO] Assombro contra Assombração

Ouça o conto narrado!

Todos os bairros possuem suas lendas urbanas, seus lugares mal assombrados… E por mais que nossa curiosidade nos lavasse a pensar em aventuras, o medo geralmente era mais forte…

Mas por que ter medo? São apenas crendices locais, não é mesmo? Será?

Um grupo de crianças, André de treze anos, Eduardo e Afonso de doze, e os irmãos Adriano e Giulia de apenas onze, se colocaram frente à entrada da casa abandonada, munidos cada qual com sua lanterna.
Aquele era um local ermo onde há anos ninguém morava… Um lugar que nem moradores de rua ousavam adentrar. Deveria ser no mínimo reduto – quem sabe de criminosos, – o famoso ninho de mafagafo. Mas muitas lendas urbanas rondavam o bairro, a respeito do lugar… Lendas sobre assombrações.


André, que costumava ser uma espécie de líder do grupo, havia desafiado o casal de irmãos dizendo que eles somente poderiam andar com o trio se entrassem na casa para buscar uma mochila que Eduardo havia deixado lá mais cedo. Riram da hesitação do novo amigo quando a irmã o repreendia, pois a menina havia vindo até ali somente para tal finalidade.


— Adri, não vá! Você não é obrigado! Deixa desta besteira… Pode ser perigoso aí dentro!


— Para o quê você veio, Giu? Na certa vai contar tudo para a mamãe…


— Não vou! Mas e se as histórias sobre a casa forem verdade?

Os outros três caíram na gargalhada… E a menina prosseguiu mudando timidamente de argumento.


— E mesmo se não forem, é uma casa velha, alguma coisa lá dentro pode cair…


— Giu, vê se não me enche!


— E você não vê que eles só querem curtir com a nossa cara?


Um ar frio tomava conta, naquela noite nublada e ventosa, enquanto novas risadas dos moleques podiam ser ouvidas naquela rua deserta.
Adriano nunca daria o braço a torcer de que a irmã teria razão, não hesitaria diante do desafio de André, pois seu ego era muito grande… Então ignorou a menina e entrou sozinho na casa.


Uma vez lá dentro seu coração acelerou no peito e ele engoliu em seco. À sua volta somente escuridão. Então direcionou a lanterna para iluminar o caminho e se pôs a caminhar.


Minutos se passaram com Giulia a um canto da calçada e os três meninos em outro. Mas ela logo cedeu ao frio e preferiu ir embora. Sendo a criança mais sensata, esperaria pelo irmão em casa, pois fizera tudo o que podia para tentar refrear aquela estupidez. Não queria a mãe chegando tarde do trabalho e ainda não encontrando ninguém. Quando Adriano se machucasse, ela poderia dizer ter avisado.

Os outros meninos a chamaram de medrosa enquanto a viam montar a bicicleta, mas ela apenas pedalou e sumiu na noite rapidamente. Sabia que era inteligente não ser “Maria vai com as outras” e seguir seu próprio caminho.


Instantes depois da partida de Giulia a voz de seu irmão soou de dentro da casa, num audível grito de socorro. André gritou de volta para que ele parasse de tentar assustá-los e apenas trouxesse logo a mochila…
Porém nada mais se ouvia. Afonso então sugeriu que eles fossem busca-lo, os outros dois o olharam com descaso, mas por fim acabaram aceitando pois também queriam sair logo daquele frio. Eduardo ainda comentava como daria uma lição em Adriano caso ele pulasse de algum lugar e lhes pregasse algum susto.


Enquanto isso, Adriano chegou correndo à rua, assustado e ofegante após ter pulado uma janela lateral da casa, e com uma mochila nas mãos…
Ao não encontrar ninguém concluiu que Giulia tinha razão e resolveu ir para casa.

No dia seguinte, e por vários dias, tanto os pais quanto a polícia local procuraram o trio de meninos, sem nada encontrar… E os dias viraram semanas, que viraram meses… Sem nenhum sinal dos três garotos.
Ao ouvirem a mãe comentar a notícia, Adriano pediu à Giulia que mantivessem segredo absoluto de que haviam estado lá e sido os últimos a vê-los. Mas também nunca contou a ela do que havia fugido na escuridão daquela casa assombrada.

***Sobre a autora:

“Sou a antítese do paradoxo com premissas de incerteza e períodos de instabilidade…”

Diz sobre si Nanda Diletante, vulgo Fernanda Miranda — autora fascinada por histórias sobrenaturais, que costuma compartilha-las no blogue Essência Diletante do WordPress e no DiletanteCast pelo Spotify… Alguém que ama gatos e cinema oitentista. Outrora já organizou e participou de várias antologias literárias, incluso uma de Portugal… Mas após o apocalipse nosso de cada dia tenta não sucumbir num surto coletivo de realidades estranhas.

Caçador Vampiro

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Eddie havia se tornado um Vampiro há alguns meses, e não contara a ninguém exatamente como isto acontecera ou quem havia lhe dado a maldição das trevas que ele caçava por toda sua vida. Começando no ramo desde que era apenas um adolescente inclusive.

Todos Caçadores e Caçadoras agora sabiam de eu segredo, embora ele por si houvesse se afastado deles por saber que carregaria um estigma pelo resto de sua existência. Eles o haviam largado à própria sorte contra uma legião de seres os quais dariam de tudo por sua cabeça, quer ele fosse agora de certa forma semelhante a eles ou não.

Eu fui a única pessoa que de fato não quis deixa-lo só, e permaneci ao seu lado… Como inclusive já fazia ao longo dos anos. Nunca permiti que Eddie encerrasse nossa parceria e nem me permiti perder contato com ele, tampouco que ele quisesse se afastar de mim. Devido ao fato que ele se tornara um Vampiro dos próprios vampiros, e cedo ou tarde foi inevitável que outros caçadores de vampiros assim o vissem: como mais um Vampiro. Apesar de tudo…

Mesmo que Eddie retirava sua alimentação sanguínea de outros sanguessugas e de animais, ou frequentemente de bolsas de sangue que por vezes conseguia com uma amiga nossa que trabalhava num hospital, ainda assim para outros caçadores, ele era apenas mais um sanguessuga.

Sobre tudo isto eu tinha uma ideia um tanto quanto excêntrica… Embora eu achasse que sentiria algo bom com ela se chegasse a se realizar, era no mínimo doentia… Pois no fundo eu pensava em dar para Eddie meu próprio sangue… Carregava comigo a intensa vontade de sentir suas presas em meu pescoço, por mais que eu lutasse contra isso dia após dia…

Embora eu soubesse que de certo me causaria dor, ao mesmo tempo algo em mim achava que isto me causaria algum tipo de prazer. Mas não ousava jamais tocar neste assunto… Jamais permitiria que Eddie percebesse este desejo em mim, pois ele odiava mostrar suas presas mais que tudo.

Apesar de que em batalha isso fosse por vezes necessário e lhe desse vantagens, desde que estranhamente ele aprendera a sugar sangue de outros Vampiros. Contudo eu sei que ele nunca havia se confirmado em se tornar aquilo que mais odiava, e assim tomaria como ofensa pessoal se eu ousasse lhe oferecer minhas veias…

Se desde humano Eddie nunca foi o cara mais bem humorado do mundo, sendo até um tanto rabugento às vezes, após se tornar um ser noturno isto parecia ter piorado… Todavia ele nunca havia sido do tipo grosseiro, comigo pelo menos… Mas deixava escapar certos rosnados vez ou outra ao ser contrariado, e isto era algo que eu não queria provocar.

Seguimos então nossa parceria, caçando os sanguessugas humanóides que eram, assim chamados, vampiros… Dia após dia… Mês após mês… Ao mesmo tempo que eu sabia que ao lado dele eu corria o risco de sucumbir às minhas próprias tentações… Ou às dele, quem sabe? Contudo, certamente eu sabia que também teria muito mais proteção contra seres noturnos, do que se me virasse nessa vida por conta própria.

Enquanto reflito sobre tudo isso, estamos aqui indo para uma batalha. Lutaremos contra um bando de vampiros sobre os quais conseguimos rastrear um ninho há poucos dias… E traçamos uma estratégia para conseguir exterminar todo um bando com duas pessoas contra eles, entrando em seu próprio covil… Mas não é a primeira vez, sempre fizemos isso. Temos muita experiência e creio que eu só preciso permanecer confiante.  E por mais que Eddie seja mais forte agora e eu não tenho poderes, não me preocupo, pois mesmo assim sempre dei conta.

Estamos agora nos túneis indo até o covil… Já invadimos casas abandonadas, prédios abandonados, cemitérios e outros locais para exterminar estes seres malévolos. Contudo desta vez o local fica embaixo de uma velha fábrica já desativada.

Eddie caminha a minha frente, uma vez que seus dons o permitem enxergar nitidamente na escuridão que envolve todo ambiente ao nosso redor. Ambos levamos não somente grandes estacas, mas outras armas que causam danos a vampiros. No entanto, de repente sinto um breve arrepio na espinha. Algo passou ao lado sem que eu visse? Tenho um pouco de insegurança… Mas isso nunca me aconteceu… Talvez estar convivendo tanto tempo longe de seres humanos normais esteja me deixando com paranoias e uma mente mais fértil do que eu gostaria de estar…

Não sei exatamente quanto tempo nossa batalha durou, mas ela foi de fato dura desta vez. Tenho alguns ferimentos, mas nada grave… Eddie por sua vez tentou me defender várias vezes, até porque faz uso dos seus poderes sobrenaturais para tanto… Mas ainda assim, agora estou vendo as consequências de nossa batalha… Os danos foram sérios, havia muitos inimigos e Eddie se feriu demais, exatamente por tentar me proteger… Uma vez que me tornei um alvo fácil, sendo o único ser humano há quilômetros de distância, já que estamos em um lugar tão ermo.

Contudo, observo que ele os derrotou quase sozinho, embora eu tenha ajudado… Mas a luta lhe consumiu energia demais. Energias as quais nem todo o sangue que sugou deles pôde lhe repor… Eddie entrou em frenesi para ser páreo para todos eles apesar dos ferimentos, e teve muitos danos apesar de que os sugasse durante toda a luta.

Eu havia sugerido muito antes que buscássemos aliados quando estávamos no caminho para cá, e também já havia dito isto há dias antes desta empreitada… Mas ele sempre foi muito teimoso! E como eu já havia comentado nunca gostou de ser contrariado. Com minha exceção, sempre gostou de agir como um lobo solitário… Mas isto cedo ou tarde cobraria um alto preço.

Bom, agora ele conseguiu o sangue do qual precisava de alguma forma… Por fim, teve que sucumbir à sua condição vampírica… E algo me diz que odiará a si mesmo por muito tempo depois disto, mas não sei se estarei lá para ver… Pois já faz alguns minutos que ele finalmente enterrou seus dentes em minha jugular… Sim. Acho que ambos conseguimos o que queríamos, ou o que desejávamos secretamente sem confessarmos a nós mesmos.

A sensação foi mais intensa do que imaginei, e noto ter sido de uma certa ingenuidade minha ser uma presa tão fácil e ainda me surpreender com tal acontecimento… Sinto dor, mas não sei se é apenas dor… Mal consigo respirar e não sei até quando a minha consciência ainda vai durar…

Mas não sinto medo… Embora nos primeiros instantes fiquei numa tensão estática, e me deixei tomar pelo nervosismo obviamente… Os olhos vermelhos que me encurralaram na parede me assustaram, e fizeram meu coração bater rápido e com muita força, tal qual imagino ocorrer com toda presa diante de um pretenso predador.

Mas logo pensei: “é o Eddie!” E meus batimentos acelerados passaram a não ser apenas pelo medo. E para mim, lembrar deste detalhe bastou para eu não reagir, e para que a dor logo se misturasse a outra coisa. Algo que deveria ser ruim, traumático ou doentio talvez… Mas não é o que eu sinto.

Sim, o prazer obscuro com qual sonhei é real… E se mescla à sucção de modo anormal, por falta de palavras melhores para descrever. Ou por falta de conseguir pensar em palavras melhores, uma vez que meu raciocínio já começa a debandar, enquanto ele ainda me segura e me suga com força, num abraço que sei que será o último da minha vida.

Será que eu sentiria algo tão intenso e este deleite dolorido, mas ainda assim claramente um deleite sem dúvidas, se caso fosse outro sanguessuga qualquer a beber de minhas veias…? 

Ah, não… Eddie me perdoe por usar esta palavra! Te ofenderia se você pudesse me ouvir… Por favor, Eu não queria te compará-lo aos sanguessugas, não foi minha intenção…

Imagino que como neófito ele nunca poderia ouvir meus pensamentos… Ao menos é o que eu sempre soube em teoria. Por isto sei que tudo o que venho pensando nos últimos dias e mesmo agora nestes últimos momentos não será de acesso para ele. Mas, e se for verdade que ao se provar do sangue humano isto muda? E há também lendas de que os vampiros podem sentir as emoções ou às vezes até alguns sentimentos das pessoas a quem sugam… Nossa, se isto for verdade ele vai poder sentir? Se sim, vai saber que sempre desejei estar nos seus braços desta maneira, ainda que me custasse a vida.

Droga! Mas que coisa estranha, não sou mesmo uma pessoa normal… Enquanto tenho meu sangue sugado, fico aqui pensando tanta coisa… E as minhas maiores preocupações são com meus sentimentos sendo expostos ou não, do que com a possibilidade quase certa de morte.

Será que ele vai se lembrar de mim? E da nossa fiel parceria ao longo de tantos anos desde nossa adolescência, ou mesmo nos últimos meses quando ele não era mais humano… Ou somente se lembrará de mim como uma mera fonte de alimentação agora, nestes últimos minutos…? Será que ele vai sentir culpa quando perceber que me matou, ou nunca mais vai sair do frenesi e ter uma mente humana novamente? Será que ele vai conseguir recuperar sua consciência humana depois disto?

…Talvez não a tenha perdido totalmente, uma vez que me suga com certa gentileza… Posso notar. Não arrancou partes de minha pele e minha jugular como costuma fazer com os sanguessugas. Poderia muito bem rasgar minha carne e expor os músculos do meu pescoço como faz com os vampiros, mas comigo não o fez… Sinto com clareza que me suga lentamente, e isto prolonga meu deleite e alivia a dor… Devo admitir. Será que isso é prazeroso para você também, Eddie? Nunca saberei…

Já estou sentindo tonturas… Já está difícil puxar ar para os pulmões… Não falta muito para o fim agora. Sinto o corpo finalmente amolecer… demorou mais do que eu esperava e eu ainda divaguei mais tempo que eu esperava… Ou será que os últimos minutos da vida sempre parecem ser mais longos…? Sinto que este será meu último suspiro antes de perder os sentidos… Adeus Eddie, continuarei fluindo dentro de você! Não se sinta culpado por isso… Foi uma intensa experiência e uma bela morte. Será que você pode me ouvir…? Ouvir o que eu digo, ainda que não fale…

No mesmo instante em que o corpo de Sam desfaleceu, os olhos de Eddie voltaram a sua coloração escura, normal e humana. E suas presas vampíricas recuaram dando lugar a dentes humanos comuns. Ele então contemplou aquele corpo desfalecido em seus braços, e notou-lhe na face uma expressão que nitidamente se confundia com um leve sorriso. Sim, aquele rosto tão conhecido já não respirava, mas parecia tão sereno! E mal sabia que ele de fato escutava cada palavra em sua mente enquanto sugava seu pescoço, e que através do gosto de seu sangue podia de fato sentir seus sentimentos e emoções de algum modo insólito que não saberia explicar.

…Sentimentos nutridos por ele, já há tanto tempo em silêncio. Exatamente por isto tentara internamente lutar contra a sua animosidade, e já que não podia cessar a sucção, ao menos que ela fosse no mínimo prazerosa para ambos. No mínimo que ela honrasse aqueles sentimentos nutridos ao longo daquela parceria. Aos quais aquele caçador nunca quisera ver quando simplesmente os aceitava como uma mera amizade. Ou talvez desde sempre já soubesse que não seria apenas isto, se ele assim quisesse. Mas nunca soubera lidar com sentimentos, nem os dos outros e nem os dele mesmo. Mas agora nada disto importava. “Adeus Eddie, continuarei fluindo dentro de você!”– aquela frase seria dificilmente esquecida.

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Dia dos Namorados, Dia Macabro

Ouça hoje no spotify este e outros episódios do Essência Diletante.

Esta era para ser uma história de Dia dos Namorados, mas às vezes realidades de fato macabras interferem nas fantasias românticas desta data… A história da menina que descobriu na data dedicada aos apaixonados, como a realidade pode ser mais perturbadora e cruel do que um filme de horror. (Baseado em fatos reais)

Leia também aqui no blogue a versão escrita do conto.

Sonhos Mortais – Conto Dramatizado

 

Tenha cuidado com seus pesadelos, pois eles podem se tornar… Sonhos Mortais…

Ouça hoje no spotify este e outros episódios do Essência Diletante.

Sonhos Mortais é um conto dramatizado com vozes e efeitos sonoros no spotify, onde um detetive, angustiado por não encontrar um assassino em série, então fica entre os pesadelos e realidade ao tentar solucionar o mistério, que pode beirar o sobrenatural…

Leia também aqui no blogue a versão escrita do conto.

[CONTO] Asas Estranhas

Imagem de autoria desconhecida, editada por Érica Farinazzo

 

Ela voava com asas estranhas.

Os céus estavam estranhos. O vento estava zunindo e levando tudo. Tupã e Cy estavam em fúria, podia-se ouvir suas vozes retumbantes, quando as nuvens eram riscadas com raios seguidos de seus brados que a tudo faziam vibrar, insatisfeitos com o que se viam sobre a Terra.

Em meio à tormenta, uma figura alada batia forte as grandes asas desprovidas de penas, como se fosse apenas uma com os céus tempestuosos. Levava consigo um pequeno tacape de formato em meia-lua, feito de pedra afiada como somente seu povo sabia fazer.

Ela mesma confeccionara aquele artefato como seus antepassados o faziam, como forma de se conectar com eles. Distantes memórias de quando fora curumim. O formato peculiar daquela singela arma, tal qual os enfeites na ponta do cabo que o adornavam, e a alça de palha que o permitia não cair-lhe das mãos durante os voos mais altos eram uma forma de manter viva uma pequena parte da cultura pertencente ao seu saudoso povo.

Enquanto ela voava os raios começavam a riscar nuvens mais próximas, clareando o céu noturno. Assim ela sentia pulsar a  ira de Tupã e Cy quando o seus estrondosos sons preenchiam os ares e anunciava que viria muita água dos céus para banhar Cy — a Terra — em breve…

Ela sobrevoava em minutos a floresta e, ao retornar para o seio da Mata, via que toda aquela ventania havia perturbado um bando de morcegos — seus semelhantes de alguma maneira — fazendo-os abandonarem a copa de uma árvore mais alta, assustados, iniciando seu voo noturno.

Ouviu as vozes de seus semelhantes alados na escuridão noturna, os ruídos quirópteros semelhantes a sutis assobios, compreendendo o que diziam e observando assim o medo deles. Aproximou-se mais do bando e emitiu sons semelhantes respondendo aos seus ruídos e tentando acalmá-los, pois sabia que ao menos de Tupã e Cy eles não tinham o que temer.

Toda aquela ira não era contra os seres da Mata, e a cunhã-morcega sabia que as divindades nativas nada fariam contra nenhuma das criaturas de Cy, pois na limpeza que precisava ser feita ela mesma pretendia ajudar à sua maneira…

Aquela cunhã-morcega há várias luas passadas, somente se alimentava de animais, usando o afiado tacape em forma de meia lua para lhes dar morte rápida e piedosa, tal qual pregava o sagrado ciclo da vida. Se fosse puramente morcega, apenas frutas e insetos lhe bastariam, mas não era. E, assim, era temida até pelos humanos que possuíam a pele em tom avermelhado como a sua, por ser de fato diferente deles.

 

O povo das aldeias contava suas histórias com temor a seus filhos, em volta das fogueiras ou em noites de lua. Os mesmos que às vezes se referiam à ela por meu nome – Guandira, embora os ouvisse nomeá-la mais vezes por Cupendipe, o nome de sua extinta nação — o povo-morcego.

Mas agora outro tipo de ser aparentemente humano caminhava naquele solo que lhe era sagrado. Os que possuíam a pele branca, pelos na face e o corpo coberto por estranhas vestes. Eles não tinham o mínimo respeito pela Mata – por Cy e Sua sabedoria ancestral. Já haviam derrubado covardemente inúmeras árvores, muitas delas muito antigas e sábias, como se fossem para eles meros objetos. Vinham com suas grandes lâminas assassinas e suas armas estranhas, que cuspiam fogo.

Quando viam a Cupendipe caminhar ou planar pelas matas que haviam invadido, nas raras ocasiões que com ela haviam se encontrado, a chamavam de nomes absurdos, aos quais não fazia ideia do que significavam, mas lhe soavam ofensivos… “Gárgula”, “demônio”, “assombração com asas”… O que mais usavam mesmo era “demônio”.

Guandira pouco se importava com como tais invasores resolviam chamá-la. Porém após ver tudo o que este tipo de ser estava fazendo com Cy, sua generosa Terra-Mãe, queria ajudar na tarefa de eliminar estes seres nocivos vindos de além mar, sabe-se lá para quê ou porquê.

Seres estranhos que viviam tão somente para cortar árvores e matar seres das matas em vão. Como se suas vidas nada valessem. E para completar uma lista de seus desmandos, de vez em quando a Cupendipe via cunhãs, as moças virgens das aldeias, entrando na mata a noite para se esconder, fugindo destes malditos invasores.

Já havia salvado uma delas, sua companheira de várias e várias luas, em um passado já um tanto distante quando ainda era praticamente curumim. Apesar do tempo, jamais esquecera aquela cunhã, e foi para ajuda-la que havia matado um deles — a primeira vez que experimentou o sangue de um destes homens exóticos de pele clara. Eis uma serventia segura para eles — Serem alimento.

Na época o atacara apenas por sentir que ele era uma ameaça quando ele a havia atingido com algo que na ocasião ainda não sabia ser uma espécie de arma. Mas agora, após presenciar tantas vezes as intenções deles com Cy e com as cunhãs, sabia que fazia bem à elas matando-os para prover alimento. Por vezes se valia do tacape para tal intento e por vezes seu machado de meia-lua nem era necessário.

Nem Anhangá – que era a própria personificação das nuances caóticas e sombrias da natureza — ficava satisfeito com o que eles faziam, mas este costumava não tomar partido em defesa de ninguém quando era preciso. Ele e sua consorte Ticê pareciam pouco se ocupar da ameaça que aqueles invasores representavam.

Quanto às Coniupuyaras, chamadas por outras nações de Ycamiabas por serem uma comunidade inteira somente de cunhatãs sem maridos, correm boatos que elas haviam conseguido expulsar um grupo destes intrusos de seu território… mas mesmo para a cunhã-morcega por hora ainda era difícil encontrar onde ficava este lugar e pedir-lhes ajuda.

Então, Guandira teria apenas Tupã e Cy por testemunha naquela noite. E sentia em suas entranhas que devia seguir seus instintos, aproveitando para livrar a Terra-Mãe gentil da presença predatória e da ameaça que estavam se tornado aqueles exóticos intrusos.

De repente, algo interrompia os pensamentos de Guandira. Ouvia um ruído alto e repentino na mata. Parecia o som surdo de um disparo daquelas armas barulhentas que cospem fogo. Virou a cabeça e fixou seu olhar profundo, enquanto ainda planava noite adentro, desta vez mais próxima das copas das árvores. Segurou o tacape-meia-lua apertando-o entre os dedos, as asas enrijeceram e ficou totalmente alerta.

Conseguia ver perfeitamente no escuro quando uma pequena ave noturna, aquela que os humanos chamavam de “rasga-mortalha” pelo som cortante que o bater de suas asas fazia no escuro, voou apressadamente, passando por ela. Com seu sutil ruído característico a ave passou tão assustada que a cunhã-morcega nem conseguiu lhe perguntar o que havia.

Logo se colocou em uma de suas posições mais confortáveis e convenientes para investigar  —  asas fechadas recolhidas junto aos braços, machado meia-lua escondido dentro delas e pernas abraçadas a um galho de árvore, com o corpo pendurado de ponta à cabeça, rente ao tronco quase da mesma cor de sua pele e de suas asas, onde se misturava entre as folhagens como parte da árvore, se ocultando com perfeição. Ali ficou uns instantes,  olhos e ouvidos atentos.

Foi, então, quando viu um destes homens de pele clara segurando uma daquelas armas em uma mão e arrastando uma cunhã por entre as árvores com a outra. Resolveu segui-los. A moça da aldeia chorava. Contra a vontade dela, ele a levava, enquanto a sensível audição da Cupendipe captava o som grave que escapava da garganta do estranho tipo humano.

— Não sejas tímida, oh rapariga!  Se não fosses tão arisca não precisaria de meu mosquete para convencer-te a vir comigo… Vais servir-me, e a meus companheiros esta noite… E se te comportares bem, ganhará um presente quando estivermos satisfeitos…

Guandira o ouvia falar enquanto a cunhã humana chorava copiosamente e tentava em vão puxar o braço para a direção contrária. A moça com asas podia ver na penumbra que a mão masculina que não segurava o mosquete prendia com força o pulso da moça que caminhava com hesitação de um modo que ela não podia escapar. Continuou a segui-los cruzando os galhos das árvores, enquanto ainda o ouvia falar, numa língua que lhe soava muito estranha, mas se esforçava para entender… Afinal, não era a primeira vez que ouvia um deles falar algo parecido.

— Ora pois, índia, por que choras? Vosmecês caminham nuas, a nos incitar os desejos… Não é culpa nossa se sois tão lindas, mas não possuem pudores!

Guandira percebia que apesar de não compreender uma só palavra dita pelo homem, a cunhã sentia-se vulnerável. A cunhã-morcego estava louca para pular e rasgar a jugular masculina que vibrava com um riso debochado ao pronunciar aquelas palavras… Usaria o tacape para abrir-lhe o crânio! Não se conformava com o modo como aqueles intrusos tratavam as cunhãs! Os absurdos e covardias que faziam Cy testemunhar…

Então, no mesmo instante, o intruso viu que a copa de uma árvore parecia se mover e ergueu a cabeça, um tanto desconfiado. Parecia ter ouvido um bater de asas… Algum animal selvagem estaria próximo?

A Cupendipe estava prestes a se revelar por causa de sua ira contida, mas se controlou com esforço, pois imaginou que para onde ele iria haveriam outros.  Seria realmente maravilhoso pegá-los todos de uma só vez. Haveria assim comida para ela mesma, através da seiva escarlate que sairia daquelas veias e também para outros irmãos de outras espécies que caminhavam pela Mata sobre quatro pés, e os quais também precisavam de alimento através da carne que ela deixaria para eles. De algum modo aqueles invasores seriam úteis para matar a fome de outras criaturas de Cy, e somente por isto ela aguardou um pouco mais.

Quando em minutos o branco chegou próximo aos outros não precisou de muitas palavras. Eles estavam em volta de uma pequena fogueira. Suas roupas estranhas, os exóticos olhos e cabelos claros iluminados pelo fogo.

Logo se ergueram e cercaram a cunhã com sorrisos maliciosos na face. A moça se encolhia e tentava se esquivar das várias mãos enquanto eles a apalpavam. Ela tentou correr e foi impedida, cercada.

O sangue de Guandira agora fervia… Em instantes não aguentou mais e se atirou aos ombros de um dos homens, puxando-o para trás de uma grande árvore em segundos, com destreza. Afastava-o dos demais para dentro da mata enquanto montava em seus ombros usando as coxas para sufocá-lo, tampando sua boca…

Foi tão rápida que ele nem soube direito o que havia acontecido. Tudo ocorreu de modo que os outros sequer notassem… Ele se debateu desgovernado com as pernas da Cupendipe em volta de sua cabeça. Mas a cunhã-morcega bateu sutilmente as asas e o segurou com firmeza.

A Cupendipe em seguida terminou por vencer o humano desorientado em poucos instantes, ao golpear seu crânio com o machado meia-lua antes que ele chamasse a atenção dos demais. Desmontou sua presa, segurando-o antes que ele caísse, e lhe enterrou os dentes na jugular ainda planando, sem que seus pés sequer alcançassem o chão enquanto agia.

O homem nem soube o que o atingiu e teve boa parte de seu sangue drenado com fartos goles, enquanto se ouvia ainda o riso dos outros, aparentemente sem perceberem o que de fato ocorria nos arbustos adiante, e que o companheiro estava morto.

Guandira aproveitou o quanto a própria cunhã distraía o grupo, e em minutos repetiu com gosto a façanha com mais dois deles. Agora seria fácil se mostrar para pegar os últimos de frente.

— Ei, gajos! Não é hora para se aliviarem no mato!

— Hão de perder todo divertimento… Onde vosmecês estão?

Os dois bradavam ainda aos risos, e já se preparavam para despirem-se da cintura para baixo, enquanto um já havia encostado a cunhã numa árvore. No entanto seus brados descontraídos foram interrompidos por um alto “guincho” semelhante ao ruído de um animal. Talvez morcegos? Mas nem eles guinchavam assim…  O som parecia vir de algum lugar bem acima de suas cabeças. Eles olharam para cima e sentiram o sangue gelar. Então libertaram a índia, que caiu ainda confusa.

Guandira bateu as asas com força e planou bem diante deles, trazendo um vento hostil contra as faces estupefatas que a observavam. Segurou um dos homens erguendo-o do chão pelos cabelos para graciosamente enterrar o tacape com força em sua garganta com um golpe certeiro, e beber a deliciosa seiva escarlate que do ferimento escorria ainda em pleno ar.

“Mas que aberração era aquela? Só podia ser um demônio!” — O último homem pensava. Então se afastou correndo da bela índia que antes estava prestes a possuir sem que ela o quisesse, e daquela coisa demoníaca que voava entre ela e ele agora… Tinha asas! Estranhas asas de morcego…

— Gárgula! Demônio! – gritou ele.

— Cupendipe! – gritou a cunhã que estivera em poder dos invasores.

Cada qual correu em direção contrária na mata, o que deixou a moça alada feliz, porque a cunhã logo estaria a salvo em sua aldeia, e levaria mais um relato a seu respeito para ser contado. Então Guandira, com sangue a manchar-lhe boa parte da face e o machado-meia-lua, foi ao encalço do último homem branco, que era o primeiro quem trouxera a moça.

Quando o alcançou, lhe lançou um chute ainda batendo as grandes asas e o deteve rente a um tronco de árvore, imobilizando-o com um dos braços, tal qual ele mesmo fizera com a índia capturada minutos antes. Com a outra mão a Cupendipe erguia lentamente o tacape ainda sujo de sangue e olhava-o sorrindo enquanto o ouvia gritar em vão.

Com a mão que antes o segurava usou as unhas e lhe rasgou primeiro suas roupas esquisitas, enquanto o pavor o impedia de reagir ou sequer se mover, já sabendo o quanto aquilo fazia um homem como ele se sentir vulnerável. Tal qual eles faziam as cunhãs que molestavam se sentirem!

Guandira logo enterrou os dentes em sua jugular após subjuga-lo por mais alguns instantes, e provou seu sangue. Em seguida enterrou o tacape no alto de sua cabeça, tomando-lhe a vida para deixar o resto juntamente com a carne para os seus amigos, os lobos-guarás, que certamente apreciariam o belo banquete deixado de presente aos pés daquela árvore.

O indigno predador humano agora havia se tornado a indefesa presa, para alimentar a quem normalmente caçava. Graças aos corpos daqueles humanos ali abandonados a refeição de vários dos amigos selvagens de Guandira — os que caminhavam sobre quatro patas — naquelas matas seria farta. Tupã bradou uma vez mais, vibrando tudo ao redor enquanto se via o clarão de sua ira manifesta em raios clarear a noite por um breve instante.

A Cupendipe sabia que aquela era sua resposta, e a manifestação de como sua singela ajuda na luta contra os invasores era apreciada… Cy, a Terra, agora era finalmente banhada pelas águas sagradas advindas do céu com fartura e vigor… A tempestade serviu bem para lavar tanto a face quanto o tacape em meia-lua de Guandira, sujos do sangue de sua última refeição.

As águas vindas do céu para brindar aquele farto banquete selvagem. A limpeza da Terra estava sendo feita e talvez o equilíbrio ancestral das matas ainda pudesse ser mantido, enquanto a Cupendipe voasse e outros seres daquelas florestas aparecessem para punir quem ameaçasse tal harmonia.

Medo do Escuro – Conto Dramatizado

 

Versão exclusiva com as vozes de cada personagem disponínel no SPOTIFY, ANCHOR e DEEZER

SINOPSE DO CONTO: Tentava dormir e não conseguia. E o medo do escuro, perdido na infância, lhe sobrevinha. O resquício do medo ancestral: o medo do desconhecido…

 

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Era realmente difícil permanecer ali inerte, em meio à todo aquele silêncio. Diante de sua fragilidade humana, tendo de dar conta de seus próprios pensamentos, outrora distraídos pela televisão, rádio ou outro eletrodoméstico. Agora não os tinha em funcionamento, não podia mais escapar de si mesmo. E de toda sua tristeza pela partida recente de sua Samia…

Ainda possuía a filha para se ocupar. Sabia que ela também sofria com a falta da mãe, e tinha pesadelos recorrentes. Queria dar-lhe mais atenção, mas não conseguia. Estava totalmente prostrado. Para arrematar seu infortúnio aquele apagão que já durava três dias e quatro noites, mergulhando toda a cidade naquela escuridão. Talvez o mundo inteiro… Ele não sabia. Sabia apenas estar em seu quarto, cercado pela ausência absoluta de luz tanto fora quanto dentro de si mesmo. Todo aquele insólito silêncio. E o medo do escuro, perdido na infância, lhe sobrevinha. O resquício do medo ancestral: o medo do desconhecido…

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Tentava dormir e não conseguia. No quarto uma grande janela de vidro ocupava quase toda a parede oposta à cama, a qual não conseguia parar de encarar. A penumbra iluminada apenas pela tênue chama de uma vela.

Os pequenos olhos já adaptados à escuridão miravam incessantemente a janela, com medo de que a qualquer momento veria algo assustador. Neste momento, interrompendo seus pensamentos, ouviu um barulho. Voltou-se hesitante e ainda engolindo o choro, o coração aos solavancos.

Estava inteira trêmula imaginando o que contemplaria mais uma vez. O escuro ajudava a alimentar ainda mais sua imaginação infantil. Quando o lado de fora da janela começava a se encher com uma misteriosa e densa névoa, cuja sutil brancura era facilmente perceptível no breu. E lá estava, saindo da sinistra bruma e flutuando no parapeito como uma assombração, uma mulher.

— Alice…

— Não! — gritou sentando na cama assustada diante daquela figura…

— Alice, querida! Se esqueceu de mim tão depressa?

— Por favor… NÃO!

A menina olhava a aparição da conhecida mulher em meio àquela inexplicável neblina que parecia sustenta-la flutuando no ar. Tão amada e saudosa, porém perturbadora naquelas condições. A chama da vela crescia e tremeluzia à sua presença, tornando aquele momento ainda mais bizarro. Aquela criança ficava paralisada contemplando-a da cama, sem saber o que fazer…

— Não seja uma filha ingrata, Alice! Deixe a mamãe entrar…

— Me deixe em paz, mãe… Por favor!

Sem tirar os olhos da figura fantasmagórica que tomava a janela, claramente visível em meio à toda aquela escuridão, a menina já não conseguia segurar as lágrimas… Ela deu um grito agudo e choroso. Embora não tivesse a esperança de que o pai, no quarto ao lado, lhe ouvisse. Pois sabia que ele estava estranho e sem se importar com mais nada desde que lhe dissera que sua mãe fora fazer companhia aos anjos e se tornara um deles. Contudo como a via agora pairando do lado de fora de janela e arranhando as unhas nos vidros, não lhe parecia nem um pouco com um anjo.

A criança se deitou chorando e cobriu a cabeça com as cobertas. Poderia simplesmente sair correndo daquele quarto, mas seus joelhos tremiam demais para conseguir ficar em pé. Alice tampou os ouvidos com as mãos para não ouvir mais o som dos dedos de sua mãe falecida, batendo em sua janela. E continuou enrolada dos pés a cabeça mais algum tempo. Não soube quantos minutos se passaram, quando de repente algo retirou-lhe as cobertas com um solavanco, e o menina gritou em desespero…

— Alice! Minha princesa, o que foi?

— A mamãe! Ela estava aqui! Ela estava aqui!

A menina se colocou de pé na cama e o pai a abraçou tendo ainda os lençóis na mão. Ficaram assim alguns minutos, cercados pela penumbra do quarto. William demorara ao vir até a filha devido à sua enorme apatia e também a ter de caminhar pela casa no escuro.

— Filha, foi só um pesadelo! Mamãe não está aqui…

— Mas pai… O fantasma da mamãe voltou!

— Sei que é difícil aceitar que a mamãe se foi… Mas, Alice, ela não é um fantasma! Ela foi para junto dos anjos, amor…

Alice preferiu não insistir. Pois apesar de sua tenra idade a voz chorosa do pai era suficiente para fazê-la entender que não adiantaria dizer mais nada. A única vela no ambiente terminou de se consumir, mergulhando pai e filha no denso breu da escuridão. 

##

William caminhava pelas ruas desertas e sem luz naquela madrugada, claudicante e com uma única vela nas mãos. Sequer se importava com a cera que lhe escorria pelos dedos. Deixara a filha adormecida em casa para obedecer a um impulso. Tomou o rumo de um local onde sentia que precisava ir para espantar seus próprios fantasmas e também os da pequena Alice. Não quis sequer esperar amanhecer, pois não aguentaria ouvir a filha acordar gritando com outro pesadelo.

Então na calada da noite acontecia algo inesperado no cemitério, pois o viúvo estava atravessando os portões para visitar o túmulo de Samia, mãe de Alice, pois se convencera de que se ela se sentia sozinha naquele lugar. Sua alma não deveria estar em paz para estar atormentando a própria filha com tantos sonhos ruins…

Ele carregava na mão oposta à vela uma rosa, colhida da roseira que a própria Samia cultivava em vida, no quintal de casa. Caminhou por alguns minutos pelas aléias, passando por muitos túmulos. Não havia uma viva alma em parte alguma para onde olhava. Só a escuridão à sua volta. E aquele medo ancestral começava a fustigar em seu íntimo…

A lua estava enorme no céu escuro. Iluminando a necrópole, desenhava no chão o contorno exato dos sepulcros e das lápides. Uma brisa insistente soprava, balançando as folhas de algumas árvores que haviam por lá, e que refletidas no chão, pareciam dançar um sinistro balé de soturnas sombras.

A essa altura da caminhada, o homem já se questionava se realmente fora uma ideia razoável ter vindo ali sozinho  num  horário como aquele… Teve de admitir que o clima do lugar e seus próprios  pensamentos já estavam incomodando-o. Estaria enlouquecendo afinal?

Até que, entre dois túmulos à frente, ele viu algo que quase o matou de susto — uma misteriosa figura estava parada de frente para ele a pouca distância. William esticou a mão que segurava a vela e se arrepiou inteiro, e não conseguia prosseguir ou voltar. Notou que uma estranha névoa encobria aos poucos a penumbra iluminada parcamente pela chama. Ficou olhando para ela sem saber o que fazer, não sabia mais se estava sonhando ou se estava acordado. Então tudo o que conseguiu fazer foi esticar a rosa na direção da figura diante dele, as mãos trêmulas…

— Para mim? Que adorável, querido! Sinto mesmo saudades das minhas flores…

A mulher se aproximava calmamente, e de repente o homem pôde perceber que estava tão nervoso que já não conseguia se mexer.

— Samia!? Me perdoe! Não tenho vindo lhe ver…

— Só preciso que você me traga nossa filha, querido!

— Isto é um sonho?

No minuto seguinte sabia bem que aquilo era uma nefasta realidade. Não foi capaz de se mexer quando aquela aparição, que se assemelhava tanto à sua falecida esposa, o tocou… E ele deixou ir ao chão a lanterna e a flor ao sentir que o toque gelado daqueles dedos fantasmagóricos era real. Samia já começava a abraçá-lo e sussurrava ao seu ouvido.

— Traga nossa menininha, William! Me ajude a chegar até ela… Eu a quero comigo, mas ela não gosta mais de mim…

##

Alice despertou e viu só escuridão à sua volta. Pensou que precisava do pai e sentou na cama.

— Pai? — chamou e não houve resposta…

Ela saía da cama e caminhava pelo próprio quarto totalmente às escuras, sozinha. Estranhou quando não ouviu ruído e pensou onde estaria o pai. Não sabia o que era pior, o medo de continuar no escuro e só ou o de tatear em volta em busca de uma vela, para achar o pai… Um aperto no peito da menina de sete anos a fez hesitar e se sentar de volta na cama após tateá-la na escuridão.

— PAI! — gritou mais alto e nada. Então veio o choro provocado pelo medo…

 As lágrimas da criança foram interrompidas quando a porta do quarto se abriu e o brilho tênue de uma vela iluminou a penumbra. A menina pulou da cama e correu em direção ao pai.  Notou então  o pai envolto na estranha névoa. Logo viu que ele não estava só. E saiu correndo de volta para a cama… Chorando.

— Filhinha… Por favor… Não rejeite a mamãe assim! — a voz feminina e melancólica tentava tranquilizar mas dava medo.

A menina apenas cobria os olhos com as mãos e se encolhia no canto da cama. Sentiu um arrepio com o toque etéreo da mãe. E por um instante conseguia notar que ele era frio, porém afetuoso.  Respirou profundamente por um minuto. Em seguida conseguiu conter o choro e retirar as mãozinhas do rosto.

Viu o pai sentado ao seu lado na beirada da cama. De pé, bem próxima, a presença espectral da mãe. Ainda estava receosa e a névoa que ela trazia consigo pairava em todo cômodo iluminado apenas pela vela que queimava onde jazia o abajur, naquele momento apagado e inútil. Tal qual todas as luzes daquela casa…

— Meu amor, não precisa ter medo. Seremos uma família de novo…

William passava os dedos nos cabelos da filha, e ela notou que ele segurava um copo comprido, ao qual à luz da vela se via cheio.

— Amor, mamãe veio nos buscar! Ela se sente sozinha e quer você com ela…

— Mas pai… Ela não ia ficar com os anjos?

— Você é meu anjo, Alice! — a mulher fantasma lhe declarou. Em um tom carinhoso que ao mesmo tempo continha algo de doentio.

A menina olhava confusa. O pai continuou no mesmo tom afetuoso. Com voz suave falava com a filha no tom ameno que se costuma usar para se convencer à uma criança…

— Filhinha, beba deste copo que o papai trouxe, e podemos ir com a mamãe…

A menina olhou desconfiada. Mas confiava no pai e aceitou tomar metade do líquido que ele lhe oferecia. Em seguida o pai bebeu o resto do elixir e abraçou a filha. Antes que os dois sofressem as convulsões que em minutos cessariam suas vidas o pai ainda lhe falou ao ouvido, O tom doentio…

— Eu te amo, minha pequena… Me perdoe! Papai tornou-se um fraco que tem medo da escuridão! Medo de viver sem nossa família… Amo demais vocês duas para continuar no escuro sozinho!

Aquele homem fora boticário durante toda sua vida, e nunca imaginara que um dia usaria seu ofício para fazer aquele elixir. Ao qual seria fundamental para unir sua família mais uma vez.

 

 

***Sobre a autora:

“Sou a antítese do paradoxo com premissas de incerteza e períodos de instabilidade…” —

Diz sobre si Nanda Diletante, vulgo Fernanda Miranda — autora fascinada por histórias sobrenaturais, que costuma compartilha-las no blogue Essência Diletante do WordPress e no DiletanteCast pelo Spotify… Alguém que ama gatos e cinema oitentista. Outrora já organizou e participou de várias antologias literárias, incluso uma de Portugal… Mas após o apocalipse nosso de cada dia tenta não sucumbir num surto coletivo de realidades estranhas.

Sangue de Lua – Conto Dramatizado

Concepção de capa por ÉRICA FARINAZZO

Versão exclusiva e sem cortes disponínel no SPOTIFY, ANCHOR e DEEZER…

SINOPSE DO CONTO: Ela atravessou os portões do cemitério naquela noite com um objetivo… Para tanto contaria com SEU PRÓPRIO SANGUE! E somente a lua cheia por testemunha…

Ouça versão exclusiva e definitiva do conto no SPOTIFY!

[Contos] Inimigo à Porta

 

De repente passou a ouvir leves batidas na porta, e empertigou-se a princípio pensando ser alguém que convivia frequentemente com ela, e pensou responder que voltasse outra hora.

Mas algo em sua intuição a impediu de responder e segurou sua voz na garganta. Então esperou. Logo uma voz através da madeira no mesmo instante se revelou como não sendo de uma pessoa comum…

Até lembrou-se de que havia fixado um aviso na porta, a altura dos olhos de quem que fosse bater, para não ser perturbada. Então quem quer que fosse, ou não sabia ler ou estava ignorando sua vontade manifesta.

Ela ficou imóvel, sequer respirava, mas buscou ficar firme e crer que as proteções que havia se esforçado por fazer lhe seriam suficientes para resistir… Pensou em checar se as tramelas da porta estavam bem trancadas, mas não o fez. Apenas apurou os ouvidos e ficou silenciosa em alerta.

O que sentia não sabia se era exatamente medo, desconfiança ou apenas parte de seu asco e aversão em não querer misturar-se àquela escória traiçoeira, a qual sabia advir de reinos mais densos e hostis. Sentiu um arrepio na nuca que se espalhou até o último fio de seu corpo quando ouviu uma voz chamar sutilmente seu nome do outro lado da porta…

Sentiu o sangue gelar e engoliu em seco, mas tratou de ignorar por saber  suficientemente bem duas regras básicas: que aquela aparente gentileza na voz era nada mais que um estratagema para fazê-la baixar a guarda, tal qual os demônios sempre faziam com frequência, sempre sedutores e manipuladores… E também ela sabia que entrar em sintonia energética com tal criatura dominadora, dando-lhe qualquer resquício de atenção apenas o fortaleceria ainda mais, e poderia fazê-la cair facilmente em sua teia.

Então ela resistiu aos impulsos que involuntariamente aquela voz lhe suscitava e ficou ali, muda e imóvel. Apenas aguardando que a coisa à soleira da porta desistisse e fosse embora… E que ela mesma continuasse a resistir a um impulso nocivo e estúpido de abrir a porta.

Então se pôde ouvir mais batidas do inimigo à porta, por hora ainda suaves. E sua mente lhe pregava peças ao relembrar de quando fora próxima dele no passado, e como isto também tivera momentos realmente bons. O coração já se acelerava em seu peito. Sim, já havia cometido erros um dia, e sido seduzida a conviver em meio a tais criaturas.

Na época ao ser escolhida achava algo natural e não enxergava nenhuma outra alternativa que lhe apetecesse mais. Afinal fora ele mesmo que a iniciara naquelas práticas, de um modo que de fato lhe suscitara uma experiência prazerosa e confortadora por algum tempo… O coração lhe batia mais forte e a mente debandara para tais lembranças do passado.

Ali, no momento presente ela respirou fundo e retornou a sua postura de autoproteção e vigília… Por um instante quase fraquejara! Chegou a sentir uma intensa onda pelo corpo e sabia que ele, do outro lado da porta, provavelmente podia sentir suas vibrações naquele instante de fraqueza, e tratou de desviar os pensamentos… Passou a evocar sua Perene Guardiã e pedir forças à Ela. Mantinha o foco em sua própria respiração agora.

Passava logo a relembrar como toda a aparente gentileza, o prazer e os poderes oferecidos por aquele ser e em troca de sua alma e sua obediência logo haviam se tornado algo com um preço por demais nocivo com o tempo. Por anos a haviam feito perder seu rumo, sua confiança em si mesma, suas alegrias, uma boa parte de sua sanidade e quase por fim perder sua própria vida — tanto a de seu corpo quanto a de sua alma.

Agora ele, o inimigo, finalmente já parecia ter se ido de sua soleira…

Contudo,  ela sabia que precisava se manter alerta. Sabia que não estaria segura se abrisse aquela maldita porta. A qual naquele momento, coberta de talismãs, sortilégios e orações da salvadora magia da Deusa que se tornara seu refúgio e sua força, era sua única defesa para que não caísse mais nas artimanhas daquele ser maligno e manipulador…

Ele sabia sim encantar as pessoas de quem precisava para roubar-lhe as almas. Apenas as usava e tornava joguetes em suas mãos, as fazia lhe servir enquanto lhes prometia o que elas mais queriam e lhes resolvia problemas corriqueiros, lhes dava pequenas migalhas de felicidade momentânea para cativá-las. Em seguida lhes devorava a alma, o coração, os sonhos e tudo de bom e cálido que houvesse em suas emoções. Ou por vezes quando lhe apetecia de fato as dominava de maneira mais direta e arrancava delas a servidão e a alma pela força.

Até por fim restar apenas ou uma casca ainda viva, porém vazia, do que a vítima fora antes ou mais um ser maligno e desalmado, destinado a perpetuar aquele ciclo maldito e contínuo, e buscar por uma próxima alma apaixonada e cativa para igualmente dominá-la e alimentar-se dela…

Aquela bruxa agora ali refugiada quase enlouquecera em todo aquele processo quando se deixara cativar um dia… Fora sorte de ela ter escapado de tal destino até ali, antes de perder-se a si mesma, graças à Deusa a quem passara a evocar e descobrir assim outros caminhos, bem menos insólitos e sem desígnios castradores, para desenvolver seus dons de modo mais natural e justo, sentindo-se mais livre e de alma fortalecida.

 Porém sabia que aquelas horrendas criaturas, mesmo após anos afastadas, finalmente haviam se lembrado de sua existência e de sua resistência. E ainda lhe aguardavam ceder ou cometer um mínimo deslize do lado de fora da porta de seu refúgio muito bem cercado de todas as defesas energéticas que aprendera e conseguira fazer. Eles ainda se consideravam seus senhores de alguma forma e não lhe dariam paz até lhe enfraquecer ou  lhe ver cair novamente junto à eles em sua mercê e danação.

 

 

 

***Sobre a autora:

“Sou a antítese do paradoxo com premissas de incerteza e períodos de instabilidade…” —

Diz sobre si Nanda Diletante, vulgo Fernanda Miranda — autora fascinada por histórias sobrenaturais, que costuma compartilha-las no blogue Essência Diletante do WordPress e no DiletanteCast pelo Spotify… Alguém que ama gatos e cinema oitentista. Outrora já organizou e participou de várias antologias literárias, incluso uma de Portugal… Mas após o apocalipse nosso de cada dia tenta não sucumbir num surto coletivo de realidades estranhas.